sexta-feira, 9 de abril de 2010

Renina e Rita

Na última quarta-feira teve início o curso "O Artista e o Guerreiro em Cada um de Nós" na Palas Athena. Na quinta comecei um ciclo de oito oficinas de Sumi-e para a terceira idade no SESC Pinheiros. Já disse e vou repetir: eu adoro trabalhar para Palas e para o SESC. É trabalhar para dois visionários, a Lia Diskin e o Danilo Miranda, duas figuras que eu admiro demais. Numa semana onde ainda meu joelho se recupera da escoriação devida ao tombo besta no Rodoanel, estive afastado dos tatames e mergulhado entre pincéis, tintas e papéis.

Gosto da confusão que surge quando embaralho o aikido com a pintura, a arquitetura com educação, a consultoria com o ciclismo. Na minha percepção está tudo conectado e não saberia como descolar o artista do consultor, o arquiteto do ciclista, o educador do aikidoka, o cidadão do profissional e por aí vai. Mas não parece que é o que as pessoas gostam de ouvir. Não se encaixar em uma ou outra coisa cria um pequeno mal-estar nas conversas. Certa vez ouvi as seguintes palavras de uma pessoa muito querida: Você age como quem quer tudo! Você não se pode ser assim... tem que haver sacrifícios! Você não pode querer tudo. Para tudo existe um limite... Estas palavras bateram fundo em algum lugar. Eu ouvi, pensei um pouco a respeito (não muito) e lá de dentro veio uma voz dizendo com firmeza: É isso! Eu quero tudo!!!

Sou só eu ou você também percebe que mais e mais pessoas estão permitindo se deslocar entre áreas diferentes buscando novos alimentos em outras disciplinas e ambientes? Me parece absolutamente saudável e natural porque assim foi a minha jornada. Acredito que em pouco tempo a formação múltipla (no meu caso meio bagunçada) feita pela fusão de competências variadas será o esperado de um profissional e não um motivo de desconfiança e dúvida. É só olhar ao lado e percebemos que já convivemos com muita gente que não atua na área onde se graduou. Algumas estão felizes e outras ainda procurando encontrar um lugar onde possam dizer que estão confortáveis e realizadas. Essa conversa tem tudo a ver com uma reflexão proposta pela querida Rita e a rede Novo Olhar onde pude contribuir um pouco.

Voltando aos pincéis, me peguei esta semana contando para meus novos alunos e alunas no SESC e na Palas Athena a história de duas mulheres, Renina e Rita. Duas mulheres que tiveram um papel importante na minha formação como artista, como guerreiro e como educador.

Renina Katz é uma artista plástica que dispensa comentários como artista. Ela foi minha professora no primeiro ano da FAU em 1979 onde lecionou até 1988 e isso sim merece comentários. No primeiro ano de faculdade, os alunos tiveram oportunidade de ter aulas com uma famosa gravurista que tinha o tratamento de deusa. Uma mulher culta, talentosa e reconhecida artista plástica. Numa avaliação final de um exercício proposto para os alunos do primeiro ano todos ouviam atentamente suas observações sobre as dezenas de desenhos espalhados numa imensa mesa. Até que ela se deteve em um desenho para descrever a todos como NÃO se desenhar. O desenho, segundo ela, era um lixo. Uma composição péssima, uma técnica péssima, tudo péssimo. E era um desenho sujo, e lembro bem dessa palavra. No final da avaliação todos levaram seus desenhos embora e aquela coisa péssima ficou largada na mesa. Quem iria assumir a autoria daquela coisa suja? Porque aquilo já não era mais um desenho e sim uma coisa. Um monte de rabiscos sujos. Aquilo foi uma experiência rica para cerca de 100 alunos e dramática para o autor daquela coisa. Ele deixou o desenho naquela mesa e tenho certeza que ele deixou lá também o seu prazer por desenhar. Afirmo com certeza porque depois de 30 anos eu posso falar tranquilo: aquela coisa suja abandonada na mesa da faculdade era o meu desenho! Mas o tempo é generoso e curador. E os anos passaram.


Em 1994 encontrei por acaso uma monja zen-budista chamada Rita Böhm. Ela dava aulas da arte Sumi-e na livraria Antakarana na rua Lisboa em São Paulo. Perguntou-me se eu gostaria de fazer um desenho e eu disse que sim. Recebi sua primeira grande lição: observe. E observei o seu desenhar. Em seguida ela me pediu para desenhar o que havia observado. E desenhei. E ela me perguntou: Quem é você? Eu respondi que era um faixa-preta em Aikido. Ela me encorajou a observar novamente o seu desenhar e reproduzí-lo mais uma vez. Desenhou orquídeas. Ela gostou da minha reprodução e eu também gostei de voltar a desenhar. O resultado desse breve e intenso contato: tornei-me seu aluno por cerca de três anos e ela me devolveu o amor que tinha pelo desenhar. Foi um resgate e uma cura. Voltei a desenhar com prazer.

Renina e Rita são duas histórias de duas mulheres. Duas professoras diferentes e importantes.

Estas duas pessoas fizeram parte da minha formação como artista, educador e guerreiro.

Hoje escrevi para Rita, cheio de saudade e gratidão. Ela mora em Berlin. Não sei onde está Renina e espero que esteja bem.





6 comentários:

Victor Farat disse...

...Acho que sempre vamos ter Ritas e Reninas em nossos caminhos, e os Buenos, que transformam isso tudo em uma reflexão de cura e realização... obrigado por compartilhar =)

José Bueno disse...

Querido Victor
Enquanto sentir prazer de trazer estas histórias para cá eu vou escrevendo. Saber que vc está aí do outro lado, lendo e curtindo, é mais um motivo para não parar. Valeu irmãozinho.

Angelica Rente disse...

Fiz uma viagem ao passado quando vc começou a contar sua história com a Renina, pois eu também tenho uma história com ela. E parei para pensar que poucos professores da faculdade de arquitetura deixaram lembranças, pelo menos para mim. De lá, trouxe para a vida dois exemplos: um negativo, de você-sabe-quem; e um positivo, do querido e saudoso Flávio Império. Até hoje ele é um dos meus modelos de educador: afetuoso, interessado, competentíssimo, criativo. Fico feliz em poder contar que vc tambem faz parte da minha lista de educadores positivamente exemplares. Domo arigato gozaimashita, sensei!

José Bueno disse...

Que legal ler tuas palavras Angelica. Nao conheci o Flavio Imperio é quem o conheceu traz esta mesma lembrança de afeto, interesse e criatividade.

Ha alguns anos eu ja nao me apresento como arquiteto. Passei usar ˜professor ou educador". Na verdade, o que eu gosto mesmo de falar para me apresentar, sem um pingo de falsa modestia, é como criador.
Acredito que todos somos e todos sofremos da mesma baixa estima de achar que nao temos esta infinita e divina capacidade de criar. Eu to perdendo esta vergonha. Sou criador.

Bjs e ate breve!

betezui disse...

Essa historia me fez pensar muito, sobre o que fazer e principalmente o que nao fazer quando em contanto consigo mesmo e com os outros. Porque todos também temos uma Renina e uma Rita dentro de nós.
Sensei, e sobre maltodextrina, qual é a receita para um esforço longo? Abraços do sul

José Bueno disse...

Bete querida, bem-vinda

(Essa guria é uma faixa-preta guerreira que está a frente do grupo Tensei de Aikido em Caxias do Sul e Porto Alegre.)

Renina e Rita parecem representar o coração duro e o coração generoso. O que você escreve me faz ver que eu também tenho meus dias Renina e meus dias Rita. E as vezes para ser Renina ou ser Rita basta apenas uma única palavra ou um único gesto.

Ah, sobre a maltodextrina vai parecer conversa de maluco mas o que eu levei para suportar 5h pedalando foram 2 barrinhas de cereal, duas bananas passas de Paraibúna, duas batatas pequenas cozidas (!), uns 4 saquinhos de proteina em gel e 1,5l de água com maltodextrina sabor açaí no camel bag. Estava tão apavorado em ter energia para os 100k que ao final terminei com a sensação de que estava mais gordo!

Detalhe: os atletas profissionais às vezes batem uma pratada de macarrão ou lazanha às 5h da manhã e na prova levam apenas uma garrafinha de água para não carregar peso ...