domingo, 4 de abril de 2010

Merda.

Acordei no último domingo animado para escrever sobre a merda. Calma, antes que alguém se ofenda com o assunto, esclareço que resolvi escrever sobre a merda como quem resolve escrever sobre o aluno mais rejeitado da classe. Aquele personagem feinho, desajeitado, cabisbaixo e solitário, ruim de bola e de matemática, desafinado, magrelo ou gordinho, aquele pedaço do grupo que ninguém quer por perto e normalmente é o alvo da gozação explícita ou dissimulada, o tal do bullying. Esse assunto está no ar e trata-se da violência e da intimidação na escola. Será que bullying teria também alguma coisa a ver com bullshit? Algo como o tratamento dados aos "merdinhas" de um grupo?

Merda é rejeição, logo ser um merda é ser um rejeitado. Ser aquilo ou aquele que não é mais necessário e que está fora do jogo. Estar na merda, ser um merda, vá à merda, ou merda! apenas é sempre uma referência ao pior lugar. Pior que ir mandar alguém à merda é mandar alguém sumir, se escafeder. Talvez o ato suicida seja aquele passo a mais de quem se deixou convencer que é uma merda ou que está numa merda. Então falar da merda é falar da paúra de ficar fora do jogo. Qualquer jogo. É falar do medo de não ser mais necessário na escola, na família, no trabalho ou em qualquer outro sistema.

Agora penso na sociedade que você e eu vivemos que é alimentada por ambição e medo. Uma engrenagem social motivada por pessoas querendo se afastar da merda e viver perto dos que estão mais em cima, especialmente tendo e comprando as coisas que fazem parecer que estão mais em cima que na merda. Podia dedicar este post a escrever sobre a elite dos vencedores, dos campeões, dos famosos que estão bem longe da merda, muitas vezes gente que nasceu na merda e tirou da merda a maior motivação para sair merda. Se olharmos um noticiário ou novela na TV aberta o que mais vemos é uma alternância entre notícias sobre os que estão e os que saíram da merda, nos educando para o que devemos buscar e o que devemos temer. Nem vou falar de BBB e aquela coisa de todo mundo hipnotizado para ver quem será eliminado...

Talvez vivamos todos numa sociedade bullying, onde trabalhamos duramente para parecer bem e não mostrar nenhuma merda. Se alguém errar, desafinar, cair, se confundir, falir ou falhar terá sempre alguém de plantão para tocar a campainha e apontar: olha a merda que esse aqui fez! E todos sorrimos um sorriso amarelo por que desta vez não fomos nós. Tudo isso é muito vivo para mim por que já errei, desafinei, cai, me confundi, fali e falhei muitas vezes. Tenho uma trajetória cheia de pequenos acidentes, interrupções, mudanças e irregularidades e aprendi a não levar muito a sério o julgamento de pessoas que tentaram me convencer de que eu era um merda. E não recebi a pressão de pessoas bobinhas. No começo da vida adulta recebia duros julgamentos de um pai severo e crítico que não via ambição na minha personalidade sonhadora. De alguns mestres recebi sofridas invalidações sobre a minha competência como arquiteto, como artista e como aikidoka. Lembro-me dos tempos de terapia onde fui para buscar uma resposta para uma dúvida que me angustiava: será que eu sou um merda?

Hoje educador, eu gosto dos desajeitados e sem "talento nato". Hoje, casado pela terceira vez, me divirto com os que logo deduzem que não sou uma pessoa estável e confiável. Torcer para a Portuguesa é algo para quem não tem medo de cair para segunda divisão: um time pequeno, típico timizinho-de-merda cujo nome de guerra lembra looser (LUSA). Deixei pelo caminho a arquitetura e a astrologia e dois casamentos com pessoas que continuo a admirar. Depois de muitos anos deixei também meus mestres japoneses (Ono e Kawai) e mergulhei na minha aventura de buscar um aikido criativo, alegre e inspirador. Isso de deixar coisas no caminho - como quem salta de um cipó para o outro - para muita gente é fazer merda. Para mim não. Percebo a cada dia que aprender com gratidão a deixar para trás as coisas que serviram e não servem mais é o jeito mais feliz e sustentável de viver.

Sinto que viver e se realizar nesta vida é bem mais que evitar merdas. Estou convencido que o viver é repleto de incertezas, tropeços e curvas. O grande herói talvez seja alguém que lida bem com as próprias falhas e não teme parecer imperfeito. Ri das próprias asneiras. Faz algumas escolhas erradas, comete gafes, escorrega, pisa no tomate e não desanima. Não teme nem evita as merdas que vão surgir na sua jornada. As próprias e as alheias.

Uma palavra na nossa língua que denota a presença da merda é um dos adjetivos usados para alguém cheio de raiva: um sujeito enfezado. Uma pessoa cheia de raiva está associada a uma pessoa cheia de fezes. Arght! Fezes são feitas para serem eliminadas e não guardadas. As merdas são o resultado final de um longo processo de absorção dos nutrientes pelo intestino. Elas são o resultado da limpeza e filtragem saudável de um organismo e o tornam mais leve e puro. Um recado aos enfezados: botem logo toda esta merda para fora e sejam mais felizes!

O sentido nojento e agressivo dado à palavra merda é cultural. O verbo emmerder ou s'emmerder é natural na língua francesa e tem o sentido de se aborrecer, se encher. Uma tradição também vinda de França esta presente no meio teatral. O melhor a desejar antes de uma estréia para o diretor e elenco de uma peça é ... Merda! Por que? Entre as versões que existem a que prefiro é a seguinte:

"Antigamente as pessoas chegavam aos teatros em carruagens. Quanto mais carruagens, mais merda os cavalos deixavam nas ruas e calçadas. Assim, muitas pessoas entravam no teatro com os sapatos sujos, de merda, e quanto mais merda deixada nos capachos, mais a casa estaria cheia. Assim, a expressão “merda” tem o mesmo significado de boa sorte e é sempre usada antes das apresentações." fonte: http://pontodemira.blogspot.com

Logo mais eu vou postar por aqui a estréia da peça que minha irmã Noemï Marinho está dirigindo. Então, está combinado, já sabem o que desejar para ela e para o elenco:

Merda!!!!



3 comentários:

Daia Mistieri disse...

Zé querido,

foi uma surpresa ver o produto final da sua idéia de escrever sobre a Merda.
Maior surpresa foi ver que a Sofia pôde levar pra aula hoje e discutir sobre Bullying e ter uma receptividade incrível por parte da professora. É a tal sincronicidade.
Você escreve muito bem e é fácil flutuar com suas palavras.
Obrigada!!!

Um beijo

Daia

Unknown disse...

Confirmo e concordo com essa versão da origem dos "votos" de merda no teatro e lembro os últimos versos da canção Merda do Caetano:

"Já se disse não
Foi uma vez
Nem três, nem quatro
Não há gente, como a gente
Gente de teatro
Gente que sabe fazer
A beleza vencer
Prá além de toda perda...

Gente que pôde inverter
Para sempre o sentido
Da palavra "merda"
Merda! Merda prá você!
Desejo
Merda!
Merda prá você também
Diga merda e tudo bem
Merda toda noite
E sempre amém...."

Beijo da irmã Noemï

Fernando J G Marinho disse...

Grande Zé
Possívelmente, por algum defeito de fabricação,sinto ainda uma certa dificulade em colocar nos meus textos a palavra merda.O problema é meu. Mas, reconheço que se trata, como você bem acentuou, de uma questão cultural.É bom frizar, que apesar de metido a moderninho, estou caminhando para os 77 anos de vida. Sua abordadem do assunto está excelente.Fez-me lembrar do saudoso mano Paulo, com aquelas teorias avançadas e engraçadas sobre o uso de palavrões,mas sempre recheiadas de argumentos inteligentes.Bateu uma saudade enorme do tio contestador, porém admirado por todos nós.Ao ler os seus escritos sinto um enorme orgulho de ser seu tio.
Não pare de filosofar e de externar seus excelentes pontos de vista.