Amazônia: Carnaval ou Quaresma?
Por João Meirelles Filho, do Instituto Peabiru
Para os cristãos o carnaval é o momento da ruptura, onde tudo pode, a folia sem limites. A quaresma, que lhe segue, é a quarentena da comiseração, do sacrifício, da meditação. A palavra carnaval origina-se do latim medieval, de carne levare – abstenção a carne.
A Amazônia dos últimos 40 anos, desde o golpe militar de 1964, é a Amazônia do tudo pode, do carnaval – pode matar índio, pode expulsar caboclo e quilombola, pode grilar terra, pode roubar madeira, pode abrir pasto pra boi, pode garimpar ouro, pode plantar soja, pode transformar castanhal em pasto. Tudo pode. Deu no que deu: 70 milhões de hectares desmatados para pastarem os bois: mais que a soma dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos!
Para a Amazônia só ficam os troféus - campeã mundial de desmatamentos e queimadas, campeã de escravização de mão de obra, campeã de desrespeito aos direitos humanos, campeã de exclusão digital, de doenças tropicais, de localidades sem bibliotecas.
O boi é o carrapato do Brasil. Suga nossa seiva, nossa selva. O boi suga nossa inteligência, nossa capacidade de pensar, nossa capacidade de nos expressarmos enquanto Nação, nos encouraça – o Brasil é um pasto cercado de arame farpado por todos os lados.
A população da Amazônia, como sempre, nem de carne de qualidade e a baixo preço se beneficia – a carne é mais cara que no Sudeste, de qualidade duvidosa e origem incerta (boa parte é oriunda de abate clandestino, o boi-mato). De toda carne da Amazônia só 15% fica na região. O restante é enviado aos outros retiros do Brasil: São Paulo e o Sudeste devoram a Amazônia. De cada três bifinhos mastigados no Brasil, pelo menos um vem da Amazônia. Você já comeu a Amazônia hoje? São mais de 75 milhões de cabeças de gado bovino na Amazônia. Em 1964 eram pouco mais de 3 milhões. Em 2020, se nada for feito, serão 200 milhões de cabeças.
Destas 75 milhões, pelo menos 10 milhões são de bois piratas – bois sem registro, sem vacina, sem controle, boi que não paga imposto, boi dentro de terra indígena e parque, que os donos escondem no fundo das invernadas, comercializados sem ninguém saber.
Para piorar, a pecuária da Amazônia gera desmatamento e queimadas, que tornam o Brasil um dos campeões do aquecimento global. Setenta e cinco por cento da contribuição brasileira ao efeito estufa vem do churrasco pirotécnico amazônico. Você cidadão gasta mais carbono ao comer seu bifinho que com o uso de veículos automotivos ou passagens aéreas.
A verdadeira causa da destruição da Amazônia é o forte crescimento do consumo de carne no último meio século. E o Brasil oferece a Amazônia para ser o grande curral o planeta. Além do sambódromo do Rio e do bumbódromo de Parintins, agora a Amazônia é o bifódromo do Planeta.
As próximas gerações não nos perdoarão por tamanho desprezo pela Amazônia e seus habitantes. Seremos aquela geração que preferiu trocar a Amazônia por mais um bifinho e um saco de carvão. Quando a próxima geração chegar teremos perdido metade,ou mais, da Amazônia porque temos preguiça de tratar o assunto com seriedade.
O que devem pensar de nós o restante do mundo quando nos vêem, pacientemente, transformar a maior floresta tropical do Planeta em picadinho? Será que não pensam assim: como podem os brasileiros, tão alegres no Carnaval, tão simpáticos, tão bonzinhos e inteligentes, aceitar entregar a Amazônia por tão pouco?
Aceitemos nossa reles condição: somos os escravos da pecuária. A pecuária é o principal motor de destruição do Brasil. Foi ela que destruiu a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga e agora devora a Amazônia. O estado de São Paulo, famoso por seus canaviais, ainda tem mais terra com boi que para cana.
Em termos mundiais a situação é ainda mais grave. A pecuária (e a área necessária para produzir comida pra boi) ocupa 40% das terras aráveis do Planeta (FAO, 2007). Isto porque a humanidade escolheu o boi como uma de suas principais fontes de proteína animal. O boi, o pior conversor de energia que existe, precisa comer 7 kg de cereal para produzir 1 kg de carne. A comida que
alimenta os boizinhos daria para saciar a fome de todo o planeta e sobraria arroz para o dia seguinte.
O problema é que o consumo de carne cresce de maneira astronômica. Enquanto o argentino e o norte-americano comem mais de 60 kg de carne bovina por ano, o brasileiro come mais de 36 kg e o chinês, magros 5 kg/ano. Se os chineses desejarem (e querem muito) dobrar seu consumo de carne, não há boi no planeta para sacia-los e aí teremos que decidir: vamos alimentar bois para os pratos chineses ou vamos tentar manter o angu do planeta Terra funcionando?
Será que não conseguimos uma combinação de atividades sustentáveis a partir da floresta em pé, da recuperação das áreas degradadas com culturas permanentes, de uma aqüicultura cabocla, de uma mineração inteligente e de ecoturismo para valer?
O Brasil sairá da adolescência quando perceber que o boi é o carrapato que suga todas as nossas forças. O boi é o carrapato que faz um verdadeiro carnaval com a gente: tem mais boi que gente neste Brasil. Está na hora de reaprendermos a ser brasileiros. Cidadania começa em nossos pequenos atos: o que decidimos comer, por exemplo.
Está na hora de pilotarmos o carrinho de supermercado cientes de que cada escolha nossa constrói ou destrói a Amazônia. Se para o dono do supermercado tanto faz de onde vem a carne, para você talvez seja diferente. Pergunte, exerça seu direito de consumidor e cidadão.
Prepare a sua fantasia para o próximo carnaval – de curupira, saci-pererê – xô boi feio, o carnaval do ano inteiro - do açaí, do cupuaçú, do ecoturismo, da madeira certificada, do turismo consciente, da Amazônia digna e respeitada. Adeus ao carnaval do Brasil da boiada sem fim.
Fonte: Instituto Peabiru / Envolverde
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