domingo, 24 de maio de 2009

Você já comeu sua Amazônia hoje?

Reproduzo abaixo trechos do longo e perturbador texto escrito por João Meirelles Filho, diretor geral do Instituto Peabiru, em Belém. Apesar de herdeiro de uma tradicional família de grandes pecuaristas, ele largou tudo para dedicar sua vida a salvar o que resta da floresta amazônica ameaçada pelos pastos que avançam a cada dia. Inevitável não pensar em parar de comer a Amazônia.

Amazônia: Carnaval ou Quaresma?
Por João Meirelles Filho, do Instituto Peabiru

Para os cristãos o carnaval é o momento da ruptura, onde tudo pode, a folia sem limites. A quaresma, que lhe segue, é a quarentena da comiseração, do sacrifício, da meditação. A palavra carnaval origina-se do latim medieval, de carne levare – abstenção a carne.

A Amazônia dos últimos 40 anos, desde o golpe militar de 1964, é a Amazônia do tudo pode, do carnaval – pode matar índio, pode expulsar caboclo e quilombola, pode grilar terra, pode roubar madeira, pode abrir pasto pra boi, pode garimpar ouro, pode plantar soja, pode transformar castanhal em pasto. Tudo pode. Deu no que deu: 70 milhões de hectares desmatados para pastarem os bois: mais que a soma dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos!

Para a Amazônia só ficam os troféus - campeã mundial de desmatamentos e queimadas, campeã de escravização de mão de obra, campeã de desrespeito aos direitos humanos, campeã de exclusão digital, de doenças tropicais, de localidades sem bibliotecas.

O boi é o carrapato do Brasil. Suga nossa seiva, nossa selva. O boi suga nossa inteligência, nossa capacidade de pensar, nossa capacidade de nos expressarmos enquanto Nação, nos encouraça – o Brasil é um pasto cercado de arame farpado por todos os lados.

A população da Amazônia, como sempre, nem de carne de qualidade e a baixo preço se beneficia – a carne é mais cara que no Sudeste, de qualidade duvidosa e origem incerta (boa parte é oriunda de abate clandestino, o boi-mato). De toda carne da Amazônia só 15% fica na região. O restante é enviado aos outros retiros do Brasil: São Paulo e o Sudeste devoram a Amazônia. De cada três bifinhos mastigados no Brasil, pelo menos um vem da Amazônia. Você já comeu a Amazônia hoje? São mais de 75 milhões de cabeças de gado bovino na Amazônia. Em 1964 eram pouco mais de 3 milhões. Em 2020, se nada for feito, serão 200 milhões de cabeças.

Destas 75 milhões, pelo menos 10 milhões são de bois piratas – bois sem registro, sem vacina, sem controle, boi que não paga imposto, boi dentro de terra indígena e parque, que os donos escondem no fundo das invernadas, comercializados sem ninguém saber.

Para piorar, a pecuária da Amazônia gera desmatamento e queimadas, que tornam o Brasil um dos campeões do aquecimento global. Setenta e cinco por cento da contribuição brasileira ao efeito estufa vem do churrasco pirotécnico amazônico. Você cidadão gasta mais carbono ao comer seu bifinho que com o uso de veículos automotivos ou passagens aéreas.

A verdadeira causa da destruição da Amazônia é o forte crescimento do consumo de carne no último meio século. E o Brasil oferece a Amazônia para ser o grande curral o planeta. Além do sambódromo do Rio e do bumbódromo de Parintins, agora a Amazônia é o bifódromo do Planeta.

As próximas gerações não nos perdoarão por tamanho desprezo pela Amazônia e seus habitantes. Seremos aquela geração que preferiu trocar a Amazônia por mais um bifinho e um saco de carvão. Quando a próxima geração chegar teremos perdido metade,ou mais, da Amazônia porque temos preguiça de tratar o assunto com seriedade.

O que devem pensar de nós o restante do mundo quando nos vêem, pacientemente, transformar a maior floresta tropical do Planeta em picadinho? Será que não pensam assim: como podem os brasileiros, tão alegres no Carnaval, tão simpáticos, tão bonzinhos e inteligentes, aceitar entregar a Amazônia por tão pouco?

Aceitemos nossa reles condição: somos os escravos da pecuária. A pecuária é o principal motor de destruição do Brasil. Foi ela que destruiu a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga e agora devora a Amazônia. O estado de São Paulo, famoso por seus canaviais, ainda tem mais terra com boi que para cana.

Em termos mundiais a situação é ainda mais grave. A pecuária (e a área necessária para produzir comida pra boi) ocupa 40% das terras aráveis do Planeta (FAO, 2007). Isto porque a humanidade escolheu o boi como uma de suas principais fontes de proteína animal. O boi, o pior conversor de energia que existe, precisa comer 7 kg de cereal para produzir 1 kg de carne. A comida que
alimenta os boizinhos daria para saciar a fome de todo o planeta e sobraria arroz para o dia seguinte.

O problema é que o consumo de carne cresce de maneira astronômica. Enquanto o argentino e o norte-americano comem mais de 60 kg de carne bovina por ano, o brasileiro come mais de 36 kg e o chinês, magros 5 kg/ano. Se os chineses desejarem (e querem muito) dobrar seu consumo de carne, não há boi no planeta para sacia-los e aí teremos que decidir: vamos alimentar bois para os pratos chineses ou vamos tentar manter o angu do planeta Terra funcionando?

Será que não conseguimos uma combinação de atividades sustentáveis a partir da floresta em pé, da recuperação das áreas degradadas com culturas permanentes, de uma aqüicultura cabocla, de uma mineração inteligente e de ecoturismo para valer?

O Brasil sairá da adolescência quando perceber que o boi é o carrapato que suga todas as nossas forças. O boi é o carrapato que faz um verdadeiro carnaval com a gente: tem mais boi que gente neste Brasil. Está na hora de reaprendermos a ser brasileiros. Cidadania começa em nossos pequenos atos: o que decidimos comer, por exemplo.

Está na hora de pilotarmos o carrinho de supermercado cientes de que cada escolha nossa constrói ou destrói a Amazônia. Se para o dono do supermercado tanto faz de onde vem a carne, para você talvez seja diferente. Pergunte, exerça seu direito de consumidor e cidadão.

Prepare a sua fantasia para o próximo carnaval – de curupira, saci-pererê – xô boi feio, o carnaval do ano inteiro - do açaí, do cupuaçú, do ecoturismo, da madeira certificada, do turismo consciente, da Amazônia digna e respeitada. Adeus ao carnaval do Brasil da boiada sem fim.

Fonte: Instituto Peabiru / Envolverde

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